Monday, April 14, 2014

A Fazedora de Malas


- Eu simplesmente não consigo fazer malas - ela disse, ao contratar a personal stylist.

Não era verdade. Dora era capaz de abrir uma mala, colocá-la sobre a cama e enchê-la de roupas. Só não era capaz de ficar satisfeita. Fazia e desfazia as possíveis combinações de calça, blusa, saia e casaco até beirar a histeria. Depois jogava tudo no chão, chorava, dizia que não tinha nenhuma roupa e que não iria viajar.

Levava duas ou três malas a cada viagem de férias. O marido nem se manifestava mais. Qualquer observação sobre o excesso de bagagem causaria mais transtorno do que carregá-las.

Mas Dora sabia. Por isso chamou-lhe a atenção o anúncio que viu num canto de página de um blog de moda: "Enjoou de tudo? Contrate uma personal stylist para dar nova vida ao seu guarda-roupa" e, em letras menores, a isca: "Ajudamos a organizar sua mala de viagem".  Ligou no mesmo dia.

No primeiro encontro com a personal (uma mocinha muito solícita cujo nome Dora jamais conseguiria lembrar), foi combinado que ela faria as malas para uma viagem de dez dias em Londres. A profissional teria acesso irrestrito ao closet da cliente e escolheria as peças com total autonomia. Dora não queria nem saber, nem ver, o que iria na bagagem.

O sistema parecia eficiente: a cliente só precisava fornecer uma programação do que pretendia fazer em sua viagem - compras, visitar museus, ir à ópera, etc. - e dar como referência uma calça e uma blusa que lhe servissem bem. Todo o resto ficava por conta da fazedora de malas, inclusive verificar a previsão do tempo e as tendências cromáticas da estação.

Em um par de horas o serviço estava feito! Sobre um banco, ao lado da cama, uma grande mala louis vuitton continha meia dúzia de looks de saia/blusa/calça/casaquinho, além de duas opções de festa e um modelo esportivo para o caso de Dora decidir usar a academia do hotel. Numa exacerbação de profissionalismo, a jovem personal imprimiu uma lista com todas as sugestões de combinações, incluindo bijuterias, sapatos e meias.

"Fácil demais", Dora pensou. Ao preencher a folha de cheque, sentiu que aquele dinheiro todo merecia mais trabalho. "Meu anjo", disse, segurando o cheque, "Você arrumaria meu guarda-roupa antes de ir? Afinal, estou pagando uma diária cheia". 

"Sem problemas", a moça concordou, "Me diga o que você quer."

Dora não sabia bem o que queria: "Eu tenho roupas demais. Separe o que me cai bem, minha querida."

A personal provou eficiência, retirando do armário roupas visivelmente ultrapassadas e, demonstrando virtuosismo, as roupas que provavelmente não serviam mais em Dora. Fez uma pilha grande no chão do quarto e pediu que a cliente aprovasse:

- O que ficou no guarda-roupa é o que lhe serve. O que está aqui, se você me permite, eu sugiro vender para um brechó.

- Faça como achar melhor, meu bem - disse Dora, com um aceno de mão que deixava clara a sua indiferença - Por mim, você pode até doar tudo pro Exército da Salvação.

Entregou o cheque à profissional, agradeceu o trabalho e despediu-se com um beijo no rosto, enquanto falava ao celular, conversando com o marido sobre detalhes da viagem no dia seguinte.

Com a autonomia que lhe foi dada, a garota procurou e encontrou uma mala grande e gasta, de imitação de couro, preta, sem rodinhas e com a alça solta de um lado. Colocou nela as roupas para doação, fechou e encostou-a num canto do quarto.  Ao terminar o trabalho, chamou a cliente para se despedir.

Dora deu uma olhada no quarto e viu a mala preta. Um espasmo de desgosto passou pelo seu rosto:

- Não vai levar as roupas velhas?
- É muita coisa e eu não tenho carro - explicou a jovem -  Mas posso ligar para alguma instituição vir recolher aqui.

A cliente deu um sorriso de alívio e virou as costas, enquanto a garota ligava para descobrir quem poderia buscar as roupas ainda naquela tarde. Antes de sair, instruiu a empregada da casa: "Estão vindo buscar umas roupas da dona Dora, é uma mala preta que está no quarto".

Ninguém apareceu para buscar as roupas à tarde, nem à noite. Na manhã seguinte, ao sair para o trabalho, Dora relembrou a empregada que alguém viria recolher umas roupas velhas e ligou para o marido, pedindo que ele passasse no seu escritório para irem direto para o aeroporto à noite.

No meio do dia, Dora lembrou que não tinha trazido a bagagem, e pediu à secretária que fosse até sua casa e pegasse sua mala. Quando ouviu a campainha, a empregada imediatamente foi buscar a velha mala de courino preto, que entregou alegremente à secretária de Dora.

Às cinco e meia, o marido de Dora apareceu no escritório, para apanhá-la.

- A mala está com a minha secretária - disse Dora, apressada, ao marido, enquanto conferia passaporte, cartão de crédito e contratava o plano de roaming pelo celular. Ele estranhou a aparência da mala mas, como sempre, achou melhor não discutir. Colocou-a no bagageiro do carro e partiu para o aeroporto, já atrasado pelo trânsito de sexta feira.

Às seis da tarde daquele mesmo dia, tocaram a campainha de Dora. Era o Exército da Salvação. Tinham vindo buscar uma mala com roupas. A empregada ficou confusa.

- Ué. De novo? 

Desconfiada, foi até o quarto da patroa e, perto da cama, encontrou uma outra mala, marrom-dourada. Abriu-a: cheia de roupas. Deu de ombros. "Ninguém me explica nada", pensou.


Entregou a mala para o rapaz credenciado, que disse "Deus lhe abençoe", agradeceu e foi embora, levando consigo uma seleção exclusiva feita por uma personal stylist.

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