- Boa tarde.
- Boa tarde.
- Meu nome é Pedro, eu sou morador de rua. Eu vim pedir um minuto da sua atenção.
- Pois não?
- Eu e a minha companheira, Paula, moramos na rua.
- ...
- Nós gostaríamos de estar pedindo a sua colaboração espontânea.
- Tipo o quê?
- Nós estamos pedindo uma colaboração espontânea para o pessoal do bairro afim de viabilizar a nossa subsistência.
- Esmola.
- Nós não vemos deste modo.
- Tá, você quer que eu colabore como?
- Se você tiver um trocado, um vale, um passe de ônibus.
- Ah, tá. Desculpa. Não tenho, não.
- Tudo bem. Você já colaborou doando a sua atenção.
(Pausa intrigada)
- Vem cá, ô, Pedro, vocês tem treinamento?
- Na ocip eles ensinam tecnica de relacionamento com o cliente.
- Na...
- No abrigo. Tem cursos de relacionamento, de conscientização...
"E ensinar a levantar uma parede de tijolo, ninguém ensina, né?" - penso em dizer, mas não quero parecer, sei lá, antipática. Digo: "Ahn, legal.", faço um sinal de positivo com a mão, sorrio e vou embora.
Wednesday, April 30, 2014
Thursday, April 24, 2014
O existencialismo ao meu alcance
Poeminha existencialista *
(por Lucia S.)
Se um dia eu
nascesse peixe
Isto não me
afligiria
Fosse eu um peixe
azul
Um salmão ou uma
enguia
Que diferença
faria?
Se um dia eu
nascesse peixe
Eu nem disto
saberia.
Se um dia eu
nascesse gato
Eu toda me
enroscaria
Deitaria na
almofada
E me espreguiçaria
Até o cair do dia.
Se um dia eu
nascesse gato
Eu apenas viveria
Se um dia eu
brotasse um coco
Provavelmente
seria
Despreocupada do
tronco
Vertigem eu não
teria
Simplesmente eu
cresceria.
Se um dia eu
brotasse um coco
Eu amadureceria.
Se eu me tornasse
uma estrela
Queimaria e
queimaria,
E muitos milhões
de anos
Depois eu me
tornaria
Um grande buraco
negro
Que a tudo
devoraria
Se eu me tornasse
uma estrela
Eu comprovava a
teoria.
Se eu mesma fosse
eu
Muito me agradaria
Entender muito
mais coisa
Do que eu
compreendia
E ser muito mais
que um gato
Ou um coco eu
quereria
E mesmo sabendo
disto
Nada mais eu
saberia
Se eu mesma fosse
eu
Eu acho que eu me
perdia.
*originalmente publicado no blog O Chaveco, idos de 2003/4
Monday, April 14, 2014
A Fazedora de Malas
- Eu simplesmente não consigo fazer malas - ela disse, ao contratar
a personal stylist.
Não era verdade. Dora era capaz de abrir uma mala, colocá-la sobre a
cama e enchê-la de roupas. Só não era capaz de ficar satisfeita. Fazia e
desfazia as possíveis combinações de calça, blusa, saia e casaco até beirar a
histeria. Depois jogava tudo no chão, chorava, dizia que não tinha nenhuma
roupa e que não iria viajar.
Levava duas ou três malas a cada viagem de férias. O marido nem se manifestava
mais. Qualquer observação sobre o excesso de bagagem causaria mais transtorno
do que carregá-las.
Mas Dora sabia. Por isso chamou-lhe a atenção o anúncio que viu num
canto de página de um blog de moda: "Enjoou de tudo? Contrate uma personal stylist para dar nova vida ao
seu guarda-roupa" e, em letras menores, a isca: "Ajudamos
a organizar sua mala de viagem". Ligou
no mesmo dia.
No primeiro encontro com a personal
(uma mocinha muito solícita cujo nome Dora jamais conseguiria lembrar), foi
combinado que ela faria as malas para uma viagem de dez dias em Londres. A
profissional teria acesso irrestrito ao closet
da cliente e escolheria as peças com total autonomia. Dora não queria nem
saber, nem ver, o que iria na bagagem.
O sistema parecia eficiente: a cliente só precisava fornecer uma
programação do que pretendia fazer em sua viagem - compras, visitar museus, ir
à ópera, etc. - e dar como referência uma calça e uma blusa que lhe servissem
bem. Todo o resto ficava por conta da fazedora de malas, inclusive verificar a
previsão do tempo e as tendências cromáticas da estação.
Em um par de horas o serviço estava feito! Sobre um banco, ao lado
da cama, uma grande mala louis vuitton continha meia dúzia de looks de saia/blusa/calça/casaquinho,
além de duas opções de festa e um modelo esportivo para o caso de Dora decidir
usar a academia do hotel. Numa exacerbação de profissionalismo, a jovem personal imprimiu uma lista com todas as
sugestões de combinações, incluindo bijuterias, sapatos e meias.
"Fácil demais", Dora pensou. Ao preencher a folha de
cheque, sentiu que aquele dinheiro todo merecia mais trabalho. "Meu
anjo", disse, segurando o cheque, "Você arrumaria meu guarda-roupa
antes de ir? Afinal, estou pagando uma diária cheia".
"Sem problemas", a moça concordou, "Me diga o que
você quer."
Dora não sabia bem o que queria: "Eu tenho roupas demais.
Separe o que me cai bem, minha querida."
A personal provou
eficiência, retirando do armário roupas visivelmente ultrapassadas e, demonstrando
virtuosismo, as roupas que provavelmente não serviam mais em
Dora. Fez uma pilha grande no chão do quarto e pediu que a cliente aprovasse:
- O que ficou no guarda-roupa é o que lhe serve. O que está aqui, se
você me permite, eu sugiro vender para um brechó.
- Faça como achar melhor, meu bem - disse Dora, com um aceno de mão
que deixava clara a sua indiferença - Por mim, você pode até doar tudo pro
Exército da Salvação.
Entregou o cheque à profissional, agradeceu o trabalho e
despediu-se com um beijo no rosto, enquanto falava ao celular, conversando com
o marido sobre detalhes da viagem no dia seguinte.
Com a autonomia que lhe foi dada, a garota procurou e encontrou uma
mala grande e gasta, de imitação de couro, preta, sem rodinhas e com a alça solta de um lado. Colocou nela as roupas para doação, fechou e encostou-a num canto do quarto. Ao terminar o
trabalho, chamou a cliente para se despedir.
Dora deu uma olhada no quarto e viu a mala preta. Um espasmo de desgosto passou pelo seu rosto:
- Não vai levar as roupas velhas?
- É muita coisa e eu não tenho carro - explicou a jovem - Mas posso ligar para alguma instituição vir
recolher aqui.
A cliente deu um sorriso de alívio e virou as costas, enquanto a
garota ligava para descobrir quem poderia buscar as roupas ainda naquela tarde.
Antes de sair, instruiu a empregada da casa: "Estão vindo buscar umas
roupas da dona Dora, é uma mala preta que está no quarto".
Ninguém apareceu para buscar as roupas à tarde, nem à noite. Na
manhã seguinte, ao sair para o trabalho, Dora relembrou a empregada que alguém
viria recolher umas roupas velhas e ligou para o marido, pedindo que ele
passasse no seu escritório para irem direto para o aeroporto à noite.
No meio do dia, Dora lembrou que não tinha trazido a bagagem, e
pediu à secretária que fosse até sua casa e pegasse sua mala. Quando ouviu
a campainha, a empregada imediatamente foi buscar a velha mala de courino
preto, que entregou alegremente à secretária de Dora.
Às cinco e meia, o marido de Dora apareceu no escritório, para apanhá-la.
Às cinco e meia, o marido de Dora apareceu no escritório, para apanhá-la.
- A mala está com a minha secretária - disse Dora, apressada, ao
marido, enquanto conferia passaporte, cartão de crédito e contratava o plano de
roaming pelo celular. Ele estranhou a aparência da mala mas, como sempre, achou
melhor não discutir. Colocou-a no bagageiro do carro e partiu para o
aeroporto, já atrasado pelo trânsito de sexta feira.
Às seis da tarde daquele mesmo dia, tocaram a campainha de Dora. Era o Exército da Salvação. Tinham vindo
buscar uma mala com roupas. A empregada ficou confusa.
- Ué. De novo?
Desconfiada, foi até o quarto da patroa e, perto da cama, encontrou uma outra mala, marrom-dourada. Abriu-a: cheia de roupas. Deu de ombros. "Ninguém me explica nada", pensou.
- Ué. De novo?
Desconfiada, foi até o quarto da patroa e, perto da cama, encontrou uma outra mala, marrom-dourada. Abriu-a: cheia de roupas. Deu de ombros. "Ninguém me explica nada", pensou.
Entregou a mala para o rapaz credenciado, que disse "Deus lhe abençoe",
agradeceu e foi embora, levando consigo uma seleção exclusiva feita por uma personal stylist.
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